segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Viagem à Munguengue

De Fernando Melo
Argumento de Charles Eduardo

Estava em uma das nefastas situações que podia acontecer Atrasado, dentro de um ônibus que estava no meio de um engarrafamento na Av. Recife, com passagem comprada para Caruaru e o expresso, tinha certeza, já estava na baia da Rodoviária, pronto para ir embora.. Diante das circunstâncias, resolvi relaxar e aproveitar a vista, pois a possibilidade daquela condução me esperar era mínima. Quando o ônibus entrou na BR-408, rodovia que dá acesso ao Terminal Rodoviário do Recife, visualizei a minha ex-condução indo para o seu destino sem dar bola para o atrasado que se avizinhava.
Ao chegar, fui tentar trocar a passagem no Box da empresa, mas o máximo que consegui foi um desconto numa daquelas sopas que pingam em cada ajuntamento de três casas na beira da estrada. Subi no veículo lotado. Havia uma poltrona no meio do carro meio que esquecida. Olhei para ela para ver se estava limpa, pois naquela posição seria difícil que estivesse permanecido vazia sem que houvesse algum problema. Como nada vi, guardei a minha bagagem no bagageiro superior e desabei na poltrona..Só aí que percebi meu companheiro do lado. Era um rapaz magro de barba por fazer, que, de maneira alguma, conseguia parar de matraquear com conhecidos que estavam à frente. Fiquei pensando como seria longa aquela viagem.
O problema é que logo começou a chover e não havia ar-condicionado. Todas as janelas foram fechadas e o calor ficou insuportável. Desta forma, naquela câmara fechada, a voz do meu companheiro ressoava bem mais alta e estridente. Assim que o despachado avistou o motorista que iria conduzir aquela bagunça lascou um:
– Mamulengo do cão... Motorista fei dos diabo. Se isto aparecesse na noite de malhar o Juda, entre meia-noite e uma hora da manhã, era um cacete tão grande que isso levava, que nunca mais ia voltá pra casa. Ah dublê de filme de terrô.
O pobre do motorista olhou para a risadagem que se seguiu, sem saber de onde partira a galhofa. Isto só fez aumentar a baderna. Como não podia mudar as feições e não havia nada a fazer para conter a desordem, virou-se para dar início a viagem.
Não pôde, não conseguiu passar a marcha-ré para sair da baia. A caixa de marcha havia ido para o espaço. O Motorista desceu, juntou com um assistente de mecânico e ficou enfiado na tampa do motor do ônibus, tentando fazer um arranjo na sardinha.
Meu amigo então, logo teceu seu comentário: -- Ih, rapaz, tão usando até pá e picareta.
Percebi onde havia me metido quando um dos amigos do agitador voltou-se em nossa direção e dirigiu-se a mim.
-- Boy, tais arrumado!. Tu acha que nós tamo aqui porquê. A cadeira dele é 12. E nós tamos na 5 e na 6 pra vê se dá pra viajá sem muita perturbação. Mas tu vai ter que agüentá a xaropada até o fim da viagem.
--Me deixe quêto, Venta de Suvela, retrucou e provocou o meu companheiro, como se não lhe houvesse uma força interior que o conduzia àquela esculhambação. Fiquei olhando o nariz do outro para ver se descobria o que viria a ser uma suvela.
Meu amigo então, começou se mal-dizendo da sorte por ter pego aquele ônibus, que tinha um compromisso em Toritama, pois era representante de vendas de uma fábrica de chinelo. Olhando para ele, tinha o tipo daqueles antigos caixeiros-viajantes, que com uma ótima conversa saia enrolando, digo, vendendo seus artigos.
--Ô da Capitar, a maré tá tão braba pro meu lado, que se eu montar uma fábrica de chupeta, os minino começa a nascer tudo sem boca só prá não chupar da minha mercadoria.
Eu preferia não dar muito cabimento à conversa, pois, com o passar do tempo estava achando que Venta de Suvela estava com toda a razão. Infelizmente, o meu companheiro não estava dando a mínima para a minha necessidade de tranqüilidade.
-- Pois é, o negócio tá tão feio que eu tô rifando a cova de meu avô lá no Cemitério de Riacho das Almas, tá interessado? E me mostrou um bloquinho que eu peguei, mas não acreditei quando li a confirmação da história. Perguntei quanto era e comprei a rifa somente para mostrar aos amigos. Depois, fiquei imaginando o que faria com aquilo se ganhasse.
Josimar (Este era o nome dele...) ficava o tempo todo de olho no trabalho da dupla, que lutava na traseira com o motor do ônibus, e, volta e meia disparava:
-- Minino, será que o ônibus num quebrô porque a máquina tá com medo da feiura do motorista. Isto num é nem motorista, é um encosto.
Para a nossa felicidade os nossos quebra-galhos resolveram o problema do veículo e Encosto, digo o motorista finalmente sentou no acento e ligou a fubica. Senti uma imensa pena do coitado, pois se notava que ele havia feito um grande esforço para salvar a nossa viagem. Estava todo molhado e olhava para trás todo desconfiado. Chegamos finalmente a BR-232 que nos conduziria nos próximos 105 km. Josimar estava mais calmo, mas não parava de mexer com o condutor.
--Este cabra não bate em bicho de jeito nenhum, pois de tão feio, os bicho disparam quando ele se aproxima.
A viagem não evoluía rapidamente e meu amigo se queixava.
-- Este danado tem uma perna só, por isso não corre mais.
Já estávamos com 40 minutos de viagem e nada de descanso. Josimar se vingava no relógio e falava pelos cotovelos, pelos dedos, pelas unhas... Eu, morrendo de sono, só suspirava e olhava para a risadagem de Venta de Suvela e do outro.
-- Ô da Capitar (Já virou meu nome....) Eu num te disse o que tu ia passar. A boca desse homem não tem cabresto, ele vai reclamar mais do que bode embarcado, vai falar até que tu durma no falatório. Falou Venta...
-- E vai falar até tu sonhar com ele falando. Disse o companheiro do outro.
-- Vocês vão tudo cagá no mato!!. Praguejou o Falador.
Virando-se para mim ele continuou: -- Ô da Capitar, deixa esses chumbrega pra lá, e escuta esta. Nós foi viajar pra Gaibú e no meio do caminho tinha um posto, onde nós paramos. Uma amiga minha me pediu pra arranjar papel higiênico, logo eu ... Quando eu cheguei no balcão falei bem alto:--‘Moço, pelo amor de Deus, me dê um rolo de papel, porque a menina se obrou nas calças e tá do início da perna até os carcanhá a disgracêra’. Quando eu fui entregar o rolo a ela, todos do posto vieram ver quem era. O resultado é que ela ficou um mês sem falar comigo. Apelidei ela de Caganeira... Ela adora....
Nesta altura, nem eu, nem ninguém no ônibus conseguia dormir. E o pior é que a maioria estava dando corda para o Tagarela que, percebendo o sucesso que estava fazendo, cada vez falava mais.
--Da Capitar, Tu sabe onde é Muguenge ?
--Onde é o que?
--Munguengue – M-U Mu, G-U-E-N Guen, G-U-E Gue, Muguengue.
--Não, não sei, não.
--É ali, entrando em Cachoeira do Rio dos Sapos e quebrando às direitas. Lá, tem uma veinha chamada Priquitinha, dona de uma barraquinha de confeito na frente dos Correios. Agora pense numa véia invocada. Tem só um metro e meio de altura, mas é braba que nem um siri na lata. Chegue lá com o dinheiro contado, porque ela num dá troco de jeito nenhum. Uma vez um amigo meu comprou um saquinho de nego-bom e deu dez reais. Ficou pelos R$ 10,00 e ainda levou tanto palavrão que saiu morrendo de vergonha.
Eu já não agüentava mais aquela falação, olhava para os lados, para frente, para trás para ver se havia um lugar vazio para onde eu pudesse me mudar. Não encontrei e continuei agüentando.
--A danada da véia tem um gato que ela amarrava em uma goiabeira. Não sei o que tinha naquela árvore que endoidou o gato ou gato amarrado endoida mesmo. Só sei que ele mordeu a raiz dela todinha. Depois de umas semanas a goiabeira, que só dava goiaba, começou a dar jaca, mamão, melancia e, de vez em quando, uma penca de banana. Ninguém entendeu nada e tá todo mundo correndo do gato.
Eu vi que o ônibus estava passando em Gravatá e tive vontade de descer. Almoçaria com minha avó que mora lá, e depois seguiria viagem em outro ônibus. Desisti da idéia quando me lembrei que estava com o dinheiro da viagem e estadia contados.
Os passageiros incentivavam Josimar com toda aquela algazarra, e ele agia como se não estivesse ouvindo, só se referindo a mim. Ocorre que cada vez falava mais alto para que toda aquela marinete ouvisse.
--Da Capitar, tu vai pra o São João de Caruaru? (Era época junina e estávamos na ante-véspera do dia de São João.)
--Vou mesmo trabalhar, mas acho que amanhã à noite devo me diverti na festa. Respondi.
--Nem vá meu amigo, que o São João de lá acaba é hoje.
--Porque? Perguntei.
--Porque a danada da minha sogra vai tá lá.
--Não entendi, retruquei.
-- Meu amiguinho, onde ela passa, ela acaba. Ela vai perturbar os sanfoneiros, vai mandar os bacamarteiros pararem de atirar, vai dar voto errado nas comidas das barraca, vai aperriar o Padre por que o barulho não tá deixando ela ouvir a missa, olhe que vai ser um inferno. Ano passado, não ouve São João em Inajá e eu sei que ela foi pra lá e acabou com a festa. Esse ano ela tá indo é pra Caruaru. E vai ficar lá em casa e Gó, coitada!! Gó (que deve ser a mulher dele) já toma conta do avô dela, que é uma pedreira. Só pra tu sabê, o avô dela esperou 3 dias de chuva com trovoadas e no quarto, que fez Sol, ele saiu pra catar tanajura. Do monte que pegou, comeu meio balde torrada na manteiga com farinha. Deu uma dor nele e o doutor disse pra que ele parasse com esse negócio de comer tanajura e comesse mais fruta. Nesse mesmo dia ele comeu 22 maçã. O resultado é que o véio se entupiu por três semanas. Gó levou o véio fastioso para o Hospital Regional do Agreste, onde ele tomou 5 lavagem, que não deram jeito. Mandaram ele pra casa e o véio tomou, por conta própria, óleo de peroba, soda cáustica e água com gás. No final da quarta semana, não agüentou nem sair da sala pra o banheiro. Despejou ali mesmo. Era mais de dois kilo. Os vizinhos não agüentaram e chamaram o carro fumacê que jogou um vapor de essências pra perfumar a rua. Agora tu imagina, esse véio com minha sogra junto. Coitada de Gó.
--Coitada mesmo, porque dos três o pior é tu. Gritou lá da frente Venta de Suvela.
O ônibus inteiro caiu na gargalhada e Josimar incrivelmente concordou.
Nesta conversa terminamos entrando em Caruaru e para minha surpresa a viagem que seria mais arrastada, devido a condução, acabou sem que eu percebesse a demora.
Quando desci do ônibus os três, não sei porque cargas d´água, cercaram-me e me levaram até a saída da Rodoviária me perguntando onde eu ficaria e qual o meu telefone.
Desconversei, pois aquela viagem já havia sido o bastante para mim.
Os trabalhos que me esperavam em Caruaru, terminaram se revelando de menor importância do que eu imaginava. Foram concluídos na manhã do dia seguinte e, como era festa, decidi aproveitar o restante da data lá onde a animação era geral.
Fomos, eu e mais três colegas de trabalho, para o Alto do Moura, aproveitar o clima junino, já que lá é um dos focos da animação.
Visitamos o Museu do Mestre Vitalino e sentimos a atmosfera da gente humilde que transforma a matéria prima, o barro, em obra-de-arte. Entramos nas casas da maioria dos artesãos de cerâmica, que é a especialidade do lugar. Em uma casinha que nada tinha haver com o comércio de artesanato, conheci as irmãs Marliete e Socorro, que fazem uma arte diferenciada de todos os outros artesãos. Suas pequenas peças (tamanhos entre 5 e 7 cm de altura) se distinguem por conseguirem retratar a expressão facial dos integrantes das situações que elas imaginaram. Vi uma pecinha que representava uma mulher batendo o pilão e juro que pensei ter visto aquela coisinha suar com o seu cansaço. Sua arte mostra as situações do universo feminino no agreste.
Na esquina da rua principal, visitei o antigo atelier do finado Antônio Galindo, que era escultor em cerâmica e poeta visionário. Seu universo se compunha de velhos de pés grandes, bruxos e bruxas com caras de animais, fadas e espécies de Gnomos. Para toda a peça que elaborava Galindo escrevia uma poesia sobre o que o havia inspirado quando da preparação daquela peça. A poesia era ofertada ao comprador, juntamente com a escultura adquirida.
O legado do Mestre Vitalino está sendo tocado por seu filho Elias que produz uma arte também extraordinária. Suas peças sem colorido, possuem em torno de 10 cm de altura e todos os elementos possuem a mesma face, o diferencial é que ele identifica as situações de sua gente no próprio dia-a-dia do agreste, retratado em peças como uma casa de farinha e seus componentes ou um vaqueiro conduzindo o boi. Vi na arte crua de Elias a herança cultural de meu povo.
Depois dessa maratona, paramos em um barzinho aberto, que já estava cheio. Demoramos para conseguir uma mesa, que estava bem imprensada em mais umas duas que já estavam ocupadas. Nos sentamos, fizemos sinal ao garçom pedindo uma cerveja e, antes de começar a conversar, senti nas minhas costas umas palmadinhas e ouvi aquela voz.
--Da Capitar, tu por aqui, ô eu por aqui também. Vem cá tomar uma cervejinha, e conhecer Gó, o avô dela e minha sogra.


OBS: Para quem possa interessar, suvela não é suvela e sim sovela e segundo o dicionário Michaelis é:
s. f. Instrumento com que os sapateiros furam o couro para o coser; furador.

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