quinta-feira, 20 de maio de 2010

Uma face do Silêncio


Deixar sua casa e partir para uma terra distante não foi uma tarefa fácil. Ficar e estabelecer os comandos cerebrais para a adaptação foi até mais fácil devido aos objetivos imputados por ele mesmo que teriam que ser atingidos.

Voltar de Angola também não foi simples. Mesmo que as raízes estejam distantes, a cada passo é como se algo seu ficasse na terra e também alguma coisa da terra penetra no seu íntimo através do contato com os pés.

Sentindo a grandeza dos desafios profissional e de vida que estava envolvido, decidiu compartilhar tudo com os amigos através da elaboração de crônicas do seu cotidiano. Estas, a medida que retratavam alguma experiência que merecesse alguma evidência, foram encaminhadas por e-mail.

Percorrendo quase todo o país os relatos dos fatos foram se avolumando e as crônicas se transformaram em um “blog” e depois em dois. Os acessos começaram e as consultas por e-mail tiveram uma boa repercussão em sua caixa. Sempre gostou de responder as impressões e aos comentários que eventualmente chegavam.

Após três anos um fato inusitado aconteceu: No retorno de uma viagem ao Brasil e Portugal para ver a família e fazer o desestress, ao chegar a Luanda percebeu uma mancha no canto inferior do olho esquerdo. Esta só fez crescer com o passar dos dias e o diagnóstico final da médica angolana foi “Descolamento de retina! Engenheiro Fernando, tens que deixar o país o mais rápido possível sob pena de perderes o olho”.

Tudo então foi providenciado para o retorno e para as cirurgias que se seguiriam no olho cego. Na via crucis das cirurgias percebeu durante a sua convalescença que já não poderia voltar a Luanda. Sua família não aguentaria mais aquela separação. Isto foi plenamente retratado nas reações de Matheus no colégio, através das notas e nas turbulentas relações com os colegas.

Quando o Dr. Teófilo, seu médico oftalmologista, deu carta branca para o retorno ao trabalho, o jeito foi escrever a seguinte carta:

Caro Sr. Waldeck Venho por meio desta informar a esta empresa, que por motivos de ordem particular requeiro o afastamento, em caráter total, do quadro de engenheiros da mesma. É uma decisão que tomo com bastante pesar, já que esta empresa é na realidade a minha família angolana e meu Porto seguro neste País. Além dos laços profissionais, os laços fraternos é que me vêm à mente quando penso em todos os passos dados por mim nesta Terra africana, na companhia e com a ajuda destes tão caros amigos que fazem esta família! Há tempo para chegar, há tempo para trabalhar e também houve tempo para que este irmão de vocês se engrandecesse e evoluísse.

Evoluir nas dificuldades, nos erros, nos acertos, na adaptação a uma terra distante, quando se percebe seus meandros e se tem a clarividência do quanto é prudente chegar e aonde é prudente não ir, pois já dizia o Poeta "Em terra alheia, pisa devagar..."

Evoluir na súbita perda dos nossos amigos queridos, que como nós tínhamos o desejo de enfrentar o desconhecido, buscando forças que nem nós mesmos sabíamos que as tínhamos.

Mas também chega o tempo para partir e este se manifesta quando olhamos para os nossos e sentimos que o peso que fica com eles já está chegando perto da nossa carga que carregamos quando saímos da nossa casa para mais uma temporada longe dos entes queridos. Então é com imenso pesar que solicito este desligamento, lembrando de todos os meus amigos companheiros, angolanos e brasileiros, desde os que fazem a diretoria até os nossos queridos amigos vigilantes e zeladores. Esta nossa convivência não tem preço.A todos os meus mais sinceros votos de apreço, na certeza de que nada é definitivo e que em breve vamos estar juntos novamente.

Um abraço
Fernando Antônio Ferraz de Melo

Ao enviar esta carta, sentiu uma enorme perda e que a guinada em sua vida continuava. Era hora de buscar novos rumos nas empresas nacionais de engenharia.

Um belo dia, já estabelecido em Recife, recebeu com bastante surpresa e emoção o seguinte e-mail:

Prezado Fernando

Há 4 meses o meu esposo está trabalhando em Angola, precisamente em Menongue, pela Andrade Gutierrez.
E como ele é muito calado, sei muito pouco de lá.
Ao verificar o mapa, vi a distância que Menongue fica da capital, e sempre tive muita preocupação e curiosidade em saber detalhes da vida lá.

E você não faz idéia de como me sentia, imaginando como é a vida neste país. Aqui na minha região só ouvi falar da dificuldade da vida, das condições de higiene entre outras coisas mais.
Inclusive na semana passada, passei por momentos difíceis, pois o meu esposo esteve doente e ficou internado na capital. Sem ninguém conhecido por perto,
para dar uma força á ele.
E você sabe como é mulher, a gente pensa com o coração e não com a cabeça, acho até que sofri mais que ele...

Mas sempre Deus coloca “anjos bons” em nosso caminho, e neste final de semana tive oportunidade de ler “Crônicas de Luanda – Angola – Parte II”.
Pude então saber mais e o mais importante - ver fotos de lá.

Gostaria de parabenizá-lo por este seu trabalho e dizer o quanto ele foi importante para mim. Foi uma luz para mim e para a minha filha.
Hoje podemos dizer que sabemos mais sobre a Angola.

Somos gratas por isto.
Muito obrigada...
Vera Oliveira

Ao lê-la não soube o que pensar, terminou por considerá-la um troféu e mostrou a Yara, sua esposa, que também se emocionou. Era um coroamento digno de todo o trabalho que tivera, escrevendo às vezes para si, pois julgava que os amigos no Brasil já não tinham paciência para os relatos que publicava em seu blog. Escrevia, pois sabia que seria um belo registro da experiência que foi um divisor de águas em sua vida. No entanto, ei-la gerando frutos e ajudando pessoas. Preparou-se para mandar uma resposta à altura, mas o que conseguiu enviar não o satisfez:

Vera,

Foi com muita emoção que li o seu e-mail. Depoimentos como o seu é que me fazem continuar a escrever e a divulgar o que acontece neste continente tão renegado ao descaso pelo resto do mundo.

Que Deus abençoe a você e sua família e que Lhe dê forças para vencer esta provação, pois tudo que estais passando a minha família passou e muitas também estão a passar. Que todos busquemos coragem com Ele. Continue com esta persistência e dê sua força para seu marido, pois o silêncio que o acompanha, e que é tão prejudicial para você e sua filha, não quer dizer fortaleza e sim temor. Temor que a verdade possa fortalecer seus argumentos e que estes o convençam a abandonar o desafio que ele abraçou juntamente com vocês. Ele está precisando de seu alento, com certeza.

Um abraço
Fernando

sábado, 15 de maio de 2010

Rally no meio do S. Francisco

Um trabalho gratificante para mim, sempre foi esses que aparecem de quando em vez, por trás da esperança que um edital de licitação pode trazer, principalmente nas épocas de escassez de serviços. Digo isto, pois por trás dessa esperança existe muito, mas muito trabalho a ser realizado. O mais interessante deste mar de tarefas é o chamado “Conhecimento do Problema”. Por traz dele existe uma viagem para o reconhecimento do trabalho que se vai realizar. Já fiz várias e todas são muito cansativas, mas extremamente gratificantes, pois a despeito de todos os perigos a que estamos sujeitos (regiões desconhecidas e algumas sabidamente assediadas por bandidos), existe o prazer do conhecimento das realidades que não estão perto de nós. Tomar contato com uma nova terra e seu povo é um deleite para um enxerido como eu, que sai fuçando os melhores locais, as melhores comidas, as personalidades, as festas e muito mais. Claro que isto se transfere ao trabalho, pois é desafiador desbravar os locais, batendo fotos, marcando o traçado com GPS, procurando jazidas e indo a cata de informações sócio-econômicas nas prefeituras, bibliotecas, etc.

Foi quando agora em agosto, veio uma tarefa envolta em grandes riscos, devido a região.
Deveria percorrer um trecho de 30 km na região de Santa Maria da B. Vista. Até ai tudo normal, a não ser pelo perigo da BR-428, entre o IBÓ e Santa Maria. O interessante estava na segunda parte da tarefa ditada pelo edital nº 27/2003 do Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco:
. Estradas no meio do Rio São Francisco, nas ilhas, em quatro delas: Ilha Pequena, da Missão, do Caraputé e da Vila. Ao todo eram 14 km pelo meio do rio. O ruim da missão (não a ilha, mas missão de tarefa) era o fator tempo. Teria que viajar numa quarta-feira trabalhar no levantamento das informações do trecho, percorrer uma ou duas ilhas na quinta e as que sobrassem na sexta, já contando com a viajem de volta neste dia. É claro que uma programação desta furou completamente.
A viagem transcorreu de forma aprazível e sem novidades, até o entroncamento da BR-316 com a tal BR-428, o temível trecho do IBÓ. Daí até Santa Maria, viajamos sob tensão observando qualquer coisa que se movesse ao longo da estrada. Depois de dois sustos, provocados por uma ponte levada pelas últimas cheias e por troncos colocados transversalmente a pista, que fizeram Stênio, o motorista, ficar branco de medo, chegamos a Sta. Maria da B. Vista.
A cidade se assemelha a grande parte das do interior pernambucano. O grande diferencial é o rio.
Numa cidade com um elemento renovador deste, tem que ter um fator preponderante em relação as outras. Nós o percebemos quando, procuramos a prefeitura e o encontramos, mais adiante rufando por entre suas ilhas e margens. Foi uma visão de arrepiar qualquer viajante que enfrenta a caatinga seca do Sertão. Olhei para Stênio e ele estava hipnotizado com a imponência do S. Francisco. Achamos a igreja matriz no alto da cidade e na praça havia um restaurante. Nele se podia ver o velho Chico em toda sua imponência com o direito às montanhas que formam seu vale (foto). Ficamos lá extasiados sem falar nada, esperando o sol se pôr, vendo de graça, um dos grandes espetáculos da natureza.


Armei a estratégia para tentar cumprir a programação “concebida” no escritório. Das 4 ilhas, três estavam próximas a Santa Maria da BoaVista e a última, a ilha da Vila, só poderia ser acessada de barco por Orocó a 36 km voltando pela BR-428. Havia ainda o trecho a ser percorrido, outra tarefa que necessitava ser concluída e tinha 31 km de extensão, passando por vários povoados ao longo da margem do rio até a tal BR-428.
Apostando (no azarão) que nós terminaríamos o trecho até as 12:30h, daria tempo de voltar e pegar as ilhas na parte da tarde, claro, sem almoçar. Para cobrir os 14 km das ilhas, a idéia era contratar um barqueiro para nos levar até elas. Certo, e como fazer os 14 km de levantamento com GPS e tudo mais? De moto! A maneira mais eficiente que encontrei. Iríamos subir a moto no barco e rodar no interior das ilhas com ela. A princípio, eu queria alugar apenas o barco e pilotar a moto, mas vi que minha pouca perícia como motoqueiro não seria páreo para o terreno arenoso das ilhas e para a quantidade de informações que teria que pegar no trajeto, aumentando assim a grandeza da tarefa.
Para que tudo desse certo teríamos que deixar tudo pronto para o dia seguinte. Contratamos um barqueiro que indicou um motoqueiro.
A ressalva para esta programação era que o barqueiro, seu Chico Elemente, só podia nos esperar até às 13:00h. Seria uma corrida contra o tempo, fazer o trecho e as 2 ilhas, no dia seguinte.
Ao amanhecer fomos à prefeitura e descobrimos Cláudio, um assessor do prefeito, que se tornou um anjo da guarda, pois quebrou vários galhos, inclusive nos fornecendo dados importantes do município. Cláudio nos indicou seu Fulgêncio, que conhecia a estrada a ser levantada, para nos acompanhar. Ele estranhou um pouco aquela forma de trabalho que “para em tudo que é lugar para apertar este aparelhinho”. Com o passar do tempo ele se acostumou e começou a nos contar a sua vida. Era pedreiro, mas o que mais gostava era sua banda de pífano, com o qual já havia viajado para S. Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mais que isto, trabalhou no seriado “Memorial de Maria Moura” da Globo, e no filme “EU, TU, ELES” com Regina Casé. Prometi assistir ao filme e observar atentamente os personagens.
Só conseguimos voltar às 16:00h, frustrando a programação. Teríamos que concluir as ilhas no dia seguinte. Terminamos o dia após alguns contatos com políticos da região que surtiram em muitas promessas e pouca ajuda efetiva.
O S. Francisco amanheceu menos grandioso naquele dia, com isso encontramos seu Chico Elemente empenhado na tarefa inglória de desencalhar sua chalana no porto do CEASA.
Conheci Cícero, o motoqueiro que iria ser de grande importância para a tarefa. Era um rapaz virado, disposto e inteligente. Enquanto empurrávamos arduamente o barco da relva para o rio, expliquei como seria o trabalho. Com o barco flutuando, era hora de colocar a moto, que ficou metade para fora do barco (foto 2).


O plano era seguir à ilha Pequena, depois ilha da Missão, ilha do Carapute, retornar e ir a Orocó em busca da ilha da Vila.
Nossa viagem começou com o barco “zoando” o rio (nova palavra que aprendi, significando a pancada do motor que se ouve ao longe). Apareceram propriedades às margens com casa requintadas e às vezes mansões. O barco ia cruzando com outros que transportavam colegiais, rebanhos ovinos e caprinos e a produção agrícola das ilhas. No barco ia seu Chico, Cícero, Stênio (morrendo de medo) e mais três habitantes ilhotas. Apesar de estar ali a trabalho, a sensação de um passeio ecológico era evidente. Pus a mão na água e vi o quanto era gelada, lavei o rosto e os braços.
A ilha Pequena apareceu e vimos que de pequena ela não tinha nada. Tinha 3,5 km de extensão, com 1,5 km de largura. Aportamos no início da ilha e o barco foi nos esperar no ponto médio, isto porque a primeira metade não havia estrada e o levantamento teria que ser a pé.
Iniciei marcando o início da futura estrada e formos percorrendo uma vegetação densa por, mais ou menos 500m. Mal era possível ver o sol devido a copa das árvores. Depois a vegetação ficou a rasteira de áreas já cultivadas. Chegamos então ao porto intermediário da ilha Pequena, onde o barco com seu Chico, Stênio e Cícero estava nos esperando.
A partir daí iríamos de moto, descobrindo a estrada longitudinal até o final da ilha. Logo que subi na moto vi que a tarefa não seria fácil devido ao terreno arenoso. Mas não percebi que enfrentaríamos um verdadeiro rally.
Foi 1,5 km passando por plantações irrigadas de cebola, arroz e feijão. Mas também trafegando em um terreno fofo onde tínhamos que ajudar com as pernas para a moto não tombar. Mas, por enquanto, a idéia estava funcionando. Terminamos de percorrer a ilha Pequena, não antes de perder a estrada principal umas 2 vezes e abrir umas 3 porteiras. Chegamos no porto do final da ilha antes do barco. Ouvimo-lo “zoar” e quando chegou encontrei Stênio, na maior felicidade, depois que havia tomado um grande banho no velho Chico. Colocamos a moto no barco e rumamos para a ilha da Missão. Se a ilha Pequena deu trabalho com seus 3,5 km, a ilha da Missão daria muito mais, com seus 6,4 km.
Na chegada da embarcação, a ilha se parecia com qualquer outra, a não ser pela bela casa nas imediações do porto. Torcíamos Cícero e eu para que encontrássemos um terreno mais consistente, o que aconteceu, pelo menos nos dois primeiros quilômetros.




Neles, predominaram as culturas em ambos os lados da estrada. Encontramos nosso rally na areia fofa após os 2 km. A estrada passava por drenos de irrigação (canalículos) e a moto tinha que passar por eles. E haja salavanco! Em determinado momento a ilha se afunilou e deu para ver suas duas margens. Realmente foi uma visão indescritível onde, ai sim, tivemos a sensação de um “Rally no meio do S. Francisco”. Houve momentos que as pernas não agüentavam mais e tínhamos que parar.
Terminamos a ilha da Missão e fomos a do Caraputé. Sendo uma ilha menor do que as outras, até o terreno ajudou para que terminássemos mais facilmente as ilhas de Santa Maria. Ficamos esperando o barco em cima de uma jangada que estava no porto. De repente, debaixo daquele sol, olhei aquela água gelada, não deu outra, tirei a roupa e só de sunga tomei um banho cheio de significados; feliz por esta mergulhando no rio da “Integração Nacional”, o “Provedor do Sertão”, o “Rio das Carrancas” e o rio de muito mais...
Não houve condições de fazer o levantamento na ilha da Vila em Orocó nesta dia. A volta durou uma hora e meia, pois navegávamos contra a corrente (foto 3). Resultado, chegamos às 16:30h sem condições de ir a Orocó.

O levantamento da ilha da Vila ficou para o dia seguinte.
Que me perdoem os praticantes de rapel, rafting, body-jump, tirolesa, etc..., mas radical mesmo é colocar uma moto numa chalana, descer o rio e fazer rally no meio dele, numa parte do Brasil que precisa ser descoberta, onde neste Sertão, quem manda é o Santo, São Francisco.