quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Conversas e Repentes

Férias na profissão de Engenheiro é uma situação delicada. Havendo muito trabalho, não há como tirar férias. Se as férias são impostas numa época de escassez de serviços, serão férias indesejadas, pois no retorno pode haver um bilhete azul nos esperando. Bom mesmo são as programadas pelas duas partes, em épocas normais de trabalho. Nestas reservo boa parte para desfruta-las no paraíso da Praia de Serrambi, litoral sul de Pernambuco, logo após as famosas praias de Porto de Galinhas e Maracaípe. As águas claras do mar fazem com que se veja o dedão do pé quando se está com água na cintura. Existe mar para todos os gostos: Forte para surfar, piscinas onde se pode ir com a garotada miúda sem nenhuma preocupação, mar calmo para relaxar. Aquela vista tornava fácil os 8 km diários de caminhada (4 para ir, 4 para voltar) com o intuito de aproveitar também a praia e o agito surfista de Maracaípe. É gostoso atravessar a desembocadura do rio Maracaípe que separa as duas praias, onde se pode aproveitar a correnteza batendo nas costas, se constituindo em mais uma verdadeira massagem relaxante. Tudo isso era um deleite para o corpo e para a vista.
Para a mente também havia seus deleites. Estava hospedado na casa de Izaldo de Melo Vasconcelos, um homem de uma doçura sem limite, do qual eu me orgulho de ser seu afilhado. Quando chegava de Maracaípe, já sabia que o encontraria na mesinha do terraço, propenso a dilapidar a sua coleção de cachaça. Ele não tomava nenhuma sem que eu chegasse para fazer-lhe companhia.
Tio Izaldo tem um conhecimento geral imenso e uma memória de fazer inveja a qualquer um. Principalmente quando se trata de poesias, e de sua especialidade, os repentistas.
-Entrou Antônio Marinho em um armazém na rua Duque de Caxias, no tempo que esta ainda tinha armazéns. Ficou olhando as mercadorias expostas, quando o balconista, que analisava o jeito meio simplório do cliente, perguntou:
– Deseja alguma coisa?
– Nada, respondeu Marinho.
– Nada não tem, tá faltando, gozou o balconista, no que foi correspondido por uma risadagem geral.
Marinho, com jeito de matuto, agüentou e ficou olhando o estabelecimento.
– O que tem naquelas panelas? Acabou perguntando, apontando para algumas panelas que estavam nas prateleiras no alto da loja.
– Nada, respondeu o mesmo balconista.
– Oi! Você acabou de dizer que nada não tinha! Respondeu Antônio na hora! “
Mudando o herói de sua narrativa, meu padrinho recomeçou: “Rogaciano Leite era um jornalista nascido em Caruaru. Na década de 50 abocanhou o prêmio Esso de reportagem com a matéria ‘Amazônia, o Inferno Verde’, para a revista ‘O Cruzeiro’. Ele era um dos exímios repentistas de Pernambuco e viajava pelo interior, na cola de algum tema para seus escritos, quando chegou na casa de um cidadão de nome Januário Pinto que fazendo 104 anos. Alguém na festa, sabendo de sua fama, solicitou a Rogaciano fazer uma homenagem ao dono da casa naquele dia tão especial. Não se fazendo de rogado, o jornalista começou:
‘Vejo aqui no recinto,
Idoso como ninguém.
O pai de Matusalém,
O velho Januário Pinto!
Vem do dilúvio não minto,
A verdade eu não alterno,
Viu Roma, viu Padre eterno,
Viu Sodoma, viu Gomorra,
Seu Januário, ora Porra!
Vá ser velho assim no Inferno!’”
E na mesma embalada, tio Izaldo continuou com Rogaciano Leite, mas levando uma revés de um companheiro em sua terra natal.
“Lourival Batista, o velho Louro do Pajeú (um dos maiores repentista nordestino, nascido em S. José do Egito) foi a uma temporada em Caruaru, onde ganhou muito dinheiro. Ao término dos eventos, seu parceiro foi embora e ele ficou lá, bebendo, jogando, gastando tudo o que havia ganho. Precisando voltar para casa, foi obrigado a vender um anel, que possuía, com a imagem do Cristo Redentor.
Após algumas semanas, Rogaciano chegou a Caruaru e procurou seus companheiros para realizar uma peleja de repentes. Muito senhor de suas possibilidades e deixando a humildade presa na casinha dos cachorros, terminou uma sextilha com o seguinte enredo:
‘Você agora fique certo,
Que Caruaru é só meu.’
O companheiro, sentindo a arrogância, em cima da bucha deu o troco:
‘Vai se dar com você o que se deu,
Com o nosso companheiro Lourival,
Ganhou muito dinheiro e perdeu.
Estragou em mulher, jogou, bebeu
E ficou com demora e mais demora
Mas depois precisando dar o fora
E possuindo um anel com o Cristo Redentor,
Procedeu como Judas Traidor.
Passou o Cristo no cobre e foi embora.

Tio Izaldo ensina que um repente não precisa ser rimado, pode ser uma armadilha verbal, como a de Antônio Marinho (no começo desse texto), ou uma resposta cínica a certas perguntas, como a de Zé Doido de Patos na Paraíba, que tendo pedido um pedaço de pão, perguntaram-lhe se iria comer ali fora, no sol escaldante.
–“Vou bem alugar um prédio para comer um pão.” Disse o doidinho.

Com certeza, a preferência de meu padrinho recai na extrema arte do repente, onde dois oponentes que se dizem “companheiros” se digladiam num empolgante duelo de inteligência e extrema inspiração. É tão surpreendente esta arte que o repentista que está dizendo um verso, já tem o seguinte pronto na cabeça e já está pensando no terceiro, claro que podendo mudar tudo a uma leve provocação do oponente. Podemos apreciar esta velocidade de raciocínio em uma contenda, relatada por meu tio, entre o afamado Ivanildo Vilanova e um parceiro menos votado que lhe caiu no interior da Paraíba. Ivanildo formado em letras e grande promotor da profissão de repentista, inclusive no Congresso Nacional, sentindo-se superior ao oponente, que era um matuto quase analfabeto, lançou como mote a cidade de Paris, capital da França, onde estivera. Seu adversário não titubeou e:

“Falar sobre Paris é negócio de tolo,
Conheci um sítio Paris junto do sítio Criolo,
Onde um cabra mata o outro
Com uma banda de tijolo.”

Meu Tio tem algumas maneiras de resolver situações que lembram a tal arte que ele tanto venera. Em um dia, na década de 60 ele ia na lotação que o levaria de Olinda, onde morava, ao Bairro do Recife, onde trabalhava no Banco do Brasil. Nas cadeiras da frente sentaram-se uma Freira com uma menina na janela. A menina, subitamente deu uma cusparada para fora e, como o veículo vinha em velocidade, tudo o que fora ejetado foi parar no rosto do meu padrinho. Este não aguentou o incômodo e vendo que não podia continuar daquela forma, pediu parada e desceu já no centro do Recife. Calhou do veículo parar em frente a um boteco. Chegou para a moça que estava à frente do estabelecimento e pediu duas "caninhas". A moça estranhou o pedido, mas o serviu. Tio Izaldo pegou uma cana, jogou paulatinamente o seu conteúdo no rosto, esfregando para retirar toda a sujeira. Ao final do preocesso pegou a segunda "cana" e tomou de uma só vez, que ninguém é de ferro. A moça olhou tudo aquilo assustada e calada. Quando Tio Izaldo perguntou quanto era, ela respondeu: "Não é nada não, nunca vi ninguém lavar a cara com cachaça a esta hora da manhã!"

Quando apreciamos a arte de alguém, é comum contemplarmos tanto aquela forma de expressão que finalizamos por adota-la como uma grande companheira em nossa vida. Como lazer, ela pode passar a ser parte integrante de nossa mente. Podemos vivê-la a tal ponto que, de repente...

Em um almoço no restaurante “Kibe Cru” no bairro do Pina, zona sul do Recife, colado ao bairro afamado de Boa Viagem, estava meu Izaldo e sua turma de amigos do Banco do Brasil a saborear as delícias da culinária moura. Um dos presentes observou:

– Vocês já perceberam como os árabes adoram usar berinjela em sua comida? Só aqui, na nossa mesa, temos três pratos com ela.
Tio Izaldo não deixando escapar a oportunidade, entre uma garfada e outra soltou...
– Deve ser por isso que eles são tão berinjelantes*(sic)!

Nota:
*Belingerante – Aquele que faz guerra, ou está em guerra (Dicionário Aurélio)

2 comentários:

Luri Barbosa disse...

Que texto perfeito, adorei Fernando! Sou encantada por esses artistas do repente, não só pela velocidade de raciocínio, mas também por fazerem poesia em seu nível mais puro.

Centenário Rogaciano Leite disse...

Olá Fernamdo Melo, grata surpresa recuperarmos essa postagem no seu blog, na qual falar sobre nosso pai, o poeta Rogaciano Leite. Esse ano de 2020, é o ano so centenário dele e estamos disponibilizando e recuperando tudo de e sobre Rogaciano Leite, foi assim que chegamos até você. Permita-ne compartilhar esse texto na pàgina do centenário Rogaciano Leite que criamos no facebook e no Instagram? Por favor, se puder participar da nossa campanha de resgate da memória dele, postando mais històrias como esta, nós desde já, lhe agradecemos. Também gostarìamos de saber se seu too ainda vive, Izaldo de Melo Vasconcelos. Estamos produzindo um documentário sobre nosso pai, Rogaciano Leite, e gostariamos de entrevistar pessoas que o conheceram para fazer dele e de seus versos. Eu moro fora, mas pode mandar mensagens pelp facebook, messeger ou e-mail que estarei atenta e o responderei. Muoto obrigada!!@