terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Um atributo de requinte

O termo “farofeiro”tem os seguintes significados no dicionário Michaelis:
“Adj. e s. m. Pop. 1. Fanfarrão. 2. Diz-se do, ou o indivíduo que mora distante da praia e a freqüenta levando o seu farnel.”
Como muitas palavras na língua portuguesa, esta teve seu sentido transformado para outros significados, e basicamente, o que está me interessando, advêm deste último sentido mostrado pelo Michaelis, que contempla um tal indivíduo que desce na praia de sacola cheia e, juntamente com os amigos e familiares, transformam o passeio em uma mistura de folia, comida, suor, bebida (cachaça, de preferência...) e areia.
Embora este personagem dê pano-para-mangas a um texto de boa análise comportamental, mesmo porque nós já fomos, em alguma época, ou de alguma forma, e sobre certos aspectos, enquadrados neste conceito, com certeza, é a matriz, mas não o significado que eu queria ilustrar.
A evolução a que eu tento descrever, se a confusão mental deixar, é a aplicação deste termo aos viajantes. Sim, aqueles viajador que têm uma compulsão por levar tudo que encontram na viagem para dentro de casa. Há de se resguardar os artesanatos e coisas afins como roupas, utensílios etc. Farofeiro que se presa enche o carro é de comida e neste quesito eu me enquadro, diria que, discretamente. Um farofeiro de renome, não pode deixar passar um doce da terra, uma fruta de época, mel–de–abelha puro, um tempero exótico e, principalmente uma boa pechincha.
Para chegar a este meu estágio (de aprendiz, vale ressaltar...) tive dois mestres, em que me respaldar, nesta tão nobre arte. São dois experts que têm estilos diferenciados, como veremos adiante.
O primeiro, e grande companheiro de profissão, chama-se Carlos Alberto Sena de Lira, popularmente conhecido como “Carlos Sena”, ou simplesmente “Sena”. Todos da Maia Melo Engenharia percebem a sua chegada quando este chega no portão da empresa, devido ao volume da voz e a grande quantidade de palavras que ele consegue dizer por minuto. É figura das mais queridas no meio da Engenharia Rodoviária e um ótimo papo. Convivo com ele desde 1986, quando fui designado para o belíssimo Estado do Rio Grande do Norte, onde a Maia Melo Engenharia liderava um Consórcio que incluíam mais duas empresas, seguindo um programa de implantação de rodovias no Estado. Estávamos em trechos diferentes, mas sempre nos encontrávamos em Natal, nas reuniões quinzenais. Naquela época já se comentava a peculiar característica de Carlos Sena em carregar suas sacolas, todo o final de semana, em direção ao Recife. Dentro delas havia de tudo – Queijo manteiga de Caicó, Doce de batata-doce, Carne de Tatu-Peba, etc.. Joel Ventura, Engenheiro da Empresa, foi o primeiro que alcunhou nosso amigo. Todas as sexta-feiras os engenheiros do Consórcio se encontravam no DER de Natal para a reunião de esporro semanal com Marco Vinícius, Coordenador Geral das empresas consultoras. Após a fatídica reunião, seguiam para a Rodoviária a fim de pegar o ônibus para o Recife. Carlos Sena sempre aumentava, e muito, a quantidade de decibéis na Estação de ônibus, contando a todos os fatos ocorridos no trecho. Numa certa sexta-feira, nosso amigo estava particularmente carregado e, de quebra, falando muito. Quando o ônibus chegou, ele foi o primeiro a subir. Joel esperou apenas a chegada ao último degrau para lascar um “farofeeeeiro !!!!”. Foi quando, no susto, ele segurou a gaiola com o canário, que havia comprado em Currais Novos, e deixou cair um saco de laranjas, que levava para a sua mãe. Enquanto os passageiros subiam para o ônibus, as laranjas faziam o circuito inverso quase derrubando a engenheira Denise por cima de sua amiga Verônica. Sena não voltou para catar suas laranjas, mas também não deu muita bola para o festival de galhofas que se seguiu, eternizando assim seu nome na galeria dourada dos compradores profissionais de acepipes.
Convivi com Carlos Sena diariamente, durante os anos de 1988 e 1989. Estávamos em Codó, no Maranhão, trabalhando na restauração da BR-316. Como todo o Estado brasileiro, seu povo tem alguns usos e costumes alimentícios que deliciam os forasteiros, como o arroz de Cuchá, e alguns que causam, digamos... estranheza! Nesta categoria, causava um grande descompasso estomacal, em nós pernambucanos, a farinha de puba. Utilizada pelos maranhenses, no seu dia-a-dia, a dita cuja era produzida numa granulometria que não tinha nenhuma aceitação nos pratos pernambucanos. Isto quer dizer que ela não passava na peneira 40 (para os leigos, significa que seus grãos eram tão grandes que podiam quebrar o maxilar na primeira mordida). A tal, não se enquadrava na famosa paixão dos nordestinos pela farinha, que é imprescindível em pratos como arrumadinho, paçoca, pirão de cosido, etc. Não se podia pensar em utilizar a farinha de puba nestes pratos. E era estranho misturá-la com feijão. O prato dobrava de tamanho.
Carlos Sena então, despachava em sua bagagem de avião, para Codó, um saco de farinha pernambucana, em sua viagem mensal ao Recife. Era engraçado vê-lo abrir seus malotes de viagem e tirar um quilo ou dois de farinha de mandioca de dentro deles. Iniciava então, um ritual de marketing do produto, onde mostrava sua consistência e finura a todos os maranhenses, começando pela cozinheira e finalizando pelo motorista Serra, que comia uma estranha derivação da farinha de puba, a misturada com coco, argh!
Desfrutei, no Maranhão, de outros acepipes da cozinha pernambucana em decorrência desse tão peculiar hábito de meu amigo, que, de certa feita, levando (de avião) um quarto de bode comprado no mercado de Areias, no Recife, ensinou a todos, maranhenses e pernambucanos, a melhor maneira de desfrutá-lo. “É guisado e acompanhado de cuscuz”, Amém!!!
O outro grande mestre nesta nobre arte é Armando ..., responsável técnico pela Tecsond, firma de prospecção geotécnica. Grande companheiro de viagens, Armando é uma das pessoas mais afáveis que conheço. Daí vem uma importante característica de todo farofeiro que se preza. Ele lembra de todo o mundo que ficou, e não descansa enquanto não leva alguma coisa para a mãe, que gosta de um queijo qualho, a irmã que gosta de um doce-de-leite, ... Até encher as malas, a sua e a do carro. Armando é um tipo de técnico que não consegue dizer “não”. Sempre que a JBR Engenharia, empresa na qual dou a minha modesta contribuição, precisa de um levantamento geotécnico, ou de um técnico que entenda das coisas para uma viagem de reconhecimento de um trecho, Armando é o contatado. Às vezes tenho a plena consciência que ele não poderia me acompanhar, mas ele modifica toda a sua programação para nos atender. Nessas viagens percebia seus hábitos farofistas (feira de doce, mel, queijo, etc.,etc) e puxava pelo assunto. As histórias foram aparecendo e entendi que além da qualidade Senniana de “comprar para a família”, Armando ainda tem uma outra que cria uma escola diferenciada na arte “farofista”, a do oportunismo.
Só para ter uma idéia do que significa esta palavra nas ações do nosso amigo, certa vez ele viajava com Luís, seu rastreador de jazidas, em direção a Milagres na Bahia. Quando haviam passado, aproximadamente, 100 quilômetros de Aracaju, perceberam uma batida entre dois caminhões. Um estava carregado de batatas e o outro vinha com sacos de cimento. As cargas estavam espalhadas e misturadas pela pista e no aterro. Havia, no local, uma movimentação de carros e pedestres, que estavam garantindo, cada um, o seu quinhão do carregamento espalhado. Armando, parou e encheu a caçamba de batatas sujas de cimento. Voltou, então para Aracaju com a intenção de vender o seu carregamento na CEASA. Pensava em pedir, pelo menos, R$ 250,00 na carga, não encontrou quem desse este valor devido a sujeira da mercadoria. Voltou à viagem com um terço do que pretendia, mas saiu no lucro.
As oportunidades, às vezes, perseguem a quem delas trata bem. Estava Armando, com sua equipe, em Vargem Grande, Maranhão, fazendo o levantamento geotécnico de uma Jazida que ele denominou de “Mangueira”, devido a uma espécime ali existente. A tal estava empenando de tão carregada. É claro que o nosso companheiro e sua equipe, não se fizeram de rogados. Encheram a Camioneta de manga-espada e mais ainda alguns sacos que eles tinham. Quando chegaram na cidade saíram distribuindo a todos que olhavam para o veículo, mesmo assim, houve manga para mais de uma semana na república, até que o último quinto apodreceu, com todos os sete moradores enjoados da deliciosa fruta.
De outra feita, eles estavam trabalhando em outra jazida próxima a Mossoró no Rio Grande do Norte, e nesta existia um plantio de Gerimum. Armando, humildemente pediu a dona do terreno unzinho para levar para a república. Pelo jeito a dona agradou-se de alguém na equipe, pois saíram com a caçamba cheia novamente. O resultado é que passaram na feira e venderam mais da metade da carga, pois não havia quem comesse toda aquela quantidade.
Em Sairé, Pernambuco, eles estavam fazendo uma sondagem no subleito da rodovia PE-423 para o projeto final de pavimentação. Em certo trecho, o dono do terreno onde a estrada iria passar, ficou extremamente feliz com a notícia de que “o asfalto” iria passar em suas terras. Armando então, aproveitou da situação e pediu ao homem um “milhinho” para o S. João. O dono então encheu a camionete D20 com sacos de milho e feijão de corda colhidos na hora. Ao chegar em casa com aquela espantosa carga a esposa lhe perguntou se ele iria mudar de ramo e abrir uma mercearia.
Além do oportunismo, meu companheiro tem como grande particularidade a negociação. Não sei se ele sempre se dá bem, mas eu notei que o importante para ele é sentir o cheiro de uma boa barganha.
Estava em Esplanada, na Bahia, quando viu, na beira da estrada, uma mulher com um viveiro de passarinhos. Lembrou que sua mãe desejava, há muito, um galo-de-campina. Parou e notou um da espécie que lhe interessava, perguntou quanto custava e a vendedora deu um preço. Quando ele começou com a velha conversa-mole para derrubar o preço, a ambulante perguntou: “Porque o senhor não leva todos? Vamos negociar, eu faço um preço bom”. Não deu outra, o viveiro foi amarrado na caçamba da camionete e para quem queria um galo-de-campina, sair com uma patativa, dois bigodes, dois sabiás, um bico-de-laica, dois guriatãs, dois papa-capins e muito mais, não foi um mal negócio, pois o preço ajustado resultara numa pechincha. Não seria se..., não sei se pela viagem, não sei se eles já estavam doentes, o fato é que os passarinhos passaram a morrer sistematicamente ao chegar em Recife e tudo o que lhe restou foi um único pintassilgo.
Em outra ocasião, estavam seguindo viagem para Tabuleiro do Norte, no Ceará, quando Armando vê uma barraca de frutas, nas imediações de Sapé, na Paraíba, e nela uns abacaxis bem maduros, prontos para o deleite. Parou a camionete e pensou em comprar quatro abacaxis apenas. Ao ver aquele carro grande, os vendedores vizinhos correram para oferecer sua mercadoria ao dono. O saldo da brincadeira foi 120 abacaxis na caçamba da D20. Chegando em Tabuleiro, a meninada saiu correndo atrás do veículo, na maior algazarra. Meu amigo, que tem bom coração, resolveu doar uma parte daquela suculenta carga para a criançada e...ficou apenas com 10 abacaxis.
Entretanto, a maior evidência de sua disposição para a comercialização aconteceu aqui mesmo na JBR. Houve uma época de grandes reformas, coisa que acontece com a maioria das empresas de engenharia consultiva, na busca da melhoria do layout de funcionamento. Em dado momento decidiu-se pela troca da cobertura da empresa, no que resultou numa imensidão de telhas armazenadas no jardim, esperando um destino mais glorioso. Armando passou, viu aquilo tudo e correu para a sala de Rogério Oliveira, Diretor de Planejamento. Pensava na casa da mãe, que vivia reclamando dos furos do telhado e pretendia comprar umas 500 telhas. Rogério, percebendo o interesse do colaborador e com a necessidade tremenda de se livrar daquele trambolho que ocupava a frente da empresa, proferiu as palavras mágicas: --“Armando, porque você não leva tudo, vamos negociar?” A história prossegue com um final de semana de intenso trabalho, pois estimou-se, em pelo menos, 5.000 telhas. Foram necessárias três cargas de caminhões, uma equipe de 5 pessoas e uma disposição para jogar o final de semana no lixo, pois associado a proposta tentadora, veio um ultimato em relação a permanência das telhas no jardim. –“Segunda-feira não pode ter nenhuma aqui!!!” Além das 5.000 telhas a operação rendeu uma bruta dor na coluna e um problema. Após trocar as telhas da casa da mãe, da garagem, do puxado da irmã, da casa do cachorro e de ter emprestado 450 ao vizinho (eu nunca vi disso...!!) sobrou ainda umas 2.500 unidades que estão ocupando um terço do quintal sem a mínima possibilidade de utilização nestes próximos dois anos.
O episódio mais recente trata do antigo portal de entrada da JBR que, por motivo de troca por uma estrutura em vidro mais moderna, está estocado no jardim. Armando já me disse que o adquiriu, no entanto o artefato ainda está enfeitando a entrada da empresa. Estamos esperando para breve o segundo ultimato.
Tive o privilégio de ver a ação dos dois expoentes, simultaneamente. Fizemos um levantamento em parceria com a Maia Melo Engenharia e eu e Carlos Sena fomos encarregados dos levantamentos de campo. Levei meu fiel escudeiro Armando e ficamos nos comunicando com Carlos Sena. No final, nos encontramos em Serra Talhada no mesmo hotel. Combinamos tomar uma cervejinha e fomos no carro de Sena. Ao entrar, senti que ele havia passado por Cabrobó, tal o cheiro de cebola que estava no veículo. Perguntei o que era aquilo. Ele me respondeu que tinha um saco de cebola na mala. –“Só isto Sena?” Perguntei e ele já percebendo o meu ar de galhofa respondeu. –“Tem também duas melancias, metade de um bode e duas garrafas de mel.” Fizemos uma das melhores farras dos últimos tempos e no dia seguinte, como estávamos longe de casa, ainda paramos em Custódia para comprar doce, em São Caetano para comprar carne-de-sol, em Encruzilhada para comprar queijo, em...