domingo, 8 de fevereiro de 2009

O Silêncio em duas faces

Sophia estava se preparando para seguir ao aeroporto. Esta preparação era tanto externa quanto internamente. Durante o ritual feminino, a se iniciar com um banho e finalizar com os últimos retoques na maquiagem, sua mente não parou. Não cansava de buscar alternativas de argumentos que poderiam ser usados para tentar remediar a situação que se encontrava com José Carlos. Sua decisão de não passar as festividades natalinas no Rio de Janeiro, como ele queria, com certeza abalara a relação de ambos. Perguntava-se, às vezes, por que raios não havia pegado o avião junto com ele.

Logo os argumentos utilizados vinham à sua mente: Passar o Natal com a mãe e o filho, medo de voar, condições do inverno no sul e sudeste, condições econômicas... Mas o motivo maior, que estava lá no fundo de sua mente, era que queria um tempo livre para ela.

Estava atordoada com as mudanças profissionais que haviam acontecido naquele ano, período que assumiu novas e estressantes responsabilidades dentro da empresa. Uma parada solitária, com poucos problemas e emoções era tudo o que necessitava para colocar a cabeça em ordem. Aquele afastamento de José Carlos, quando visitaria seus filhos no Rio de Janeiro, não era esperado, mas facilitaria ainda mais os seus objetivos. Não programou nada durante os 20 dias de folga, tanto é que dispensou a arrumadeira e assumiu os serviços da casa. O melhor do dia era a hora que ia à praia, andava e contemplava o mar. Olhando para aquela serenidade misturada com a força que só o mar tem, parecia que seus problemas estavam todos resolvidos. Até este que fora criado por ela e que enfrentaria agora.

José Carlos não cedera a seus argumentos e viajara carrancudo. Fora extremamente formal e arrediu nas suas manifestações de final de ano ao telefone. Mesmo ontem, ao informar o horário da chegada, fora frio e breve. Agora ela estava esperando uma possível discussão no caminho de retorno do Aeroporto e com ótimas probabilidades de continuidade quando chegassem à casa. Isto a estava deprimindo bem mais, pois este clima poderia durar dias, dependendo do estado de ânimo de José Carlos.

Pegou as chaves do carro e desceu. Já estava um pouco atrasada e só faltaria este motivo para complicar ainda mais esta situação, um atraso...

Parada em um sinal de trânsito, o rádio ligado, que não cumpria o seu papel de relaxamento, o ar no segundo ponto e os vidros fechados, não deu importância ao senhor que chegava com uma sacola e um maço de papéis na mão. Na sacola estava escrito a entidade beneficente ligada a um grupo espírita.

O senhor fez-lhe um sinal. Ela não estava com paciência, nem motivação para ouvir a ladainha e tirar dinheiro da bolsa. Disse-lhe, através de mímica, que não possuía trocados. O senhor não desistiu e retrucou, também através de mímica, que ele queria dar e não receber.

Sophia então achou que ninguém merecia uma indelicadeza, principalmente uma pessoa que estava ofertando algo. Desceu o vidro, recebeu o papel que conta mensagem qualquer. Desculpou-se com o senhor pela ausência de dinheiro. Ele agradeceu a ela ter recebido sua oferta e foi em frente em seu trabalho não reconhecido.

Aquela demonstração de abnegação e, por que não dizer carinho, a fez esquecer, por alguns momentos, o seu problema. Colocou o papel no painel do carro, prometendo a si mesma que o mínimo que poderia fazer por aquele homem era ler a mensagem.

Estacionou o carro no Aeroporto e foi ao saguão pegar informações sobre o vôo. Felizmente chegara quando o avião acabara de aterrissar.

A ansiedade começou na espera em frente ao portão de desembarque. Queria superar aquele sentimento e tentou se distrair olhando as esculturas de Brennand, mas a rusticidade do mestre não a prendeu por muito tempo e a ansiedade continuou...

José Carlos finalmente deixou o saguão de recepção de bagagens. Ela deu um sorriso para recebê-lo, foi retribuída com um beijo, e só...! Tentou iniciar uma conversa sobre o vôo, mas as respostas foram monossilábicas. Nova tentativa a respeito da saúde dos filhos no Rio, novos monossílabos. Desistiu!

Foram para o estacionamento em silêncio. Ela desligou o alarme e abriu compartimento de bagagem. Enquanto ele carregava as malas ela foi pagar o estacionamento.

Encontrou-o já dentro do carro, no banco do carona. Ao entrar e ligar o veículo ele perguntou: ”Quem te deu isto?” Ela olhou para ele, que estava com a mensagem que recebera a pouco na rua. “Foi um senhor, agora mesmo, na rua. Acho que era de algum grupo espírita.”

Não houve mais perguntas e nem mais diálogos. Em sua mente, Sophia só esperava a hora em que seria questionada por sua ausência nas festas de fim-de-ano. Mas a viagem transcorreu em silêncio. Ao chegar em casa, almoçaram a frente da televisão e José Carlos, por si só, começou a relatar as novidades do Rio de Janeiro. Falou alguns detalhes dos filhos, passeios que havia realizado com eles, conversas que haviam tido, etc.

Ela então contou sobre seu período de descanso e sobre sua experiência doméstica, que provocou alguns risos. A vida então voltou ao normal e a convivência foi sendo restabelecida. No início da noite, Sophia pegou o carro para ir ao supermercado. Ao ligar o veículo, viu a mensagem esquecida no painel e o momento da pergunta de José Carlos veio à mente. Logo entendeu que alguma coisa ele lera ali que acendeu o seu interesse. Pegou o papel, dando-lhe uma importância que não havia dado antes. Havia um texto longo, mas a mensagem que se destacava em um texto impresso em letras maiúsculas era: “Em certas ocasiões é melhor deixar o silêncio falar

Frei Ludugero contra a mulé que não queria ir pro Céu

Vivia em certa cidade
Faceira des que amanhecia
Aruam, a mulé vaidade
Trabalhando noite e dia
De folga era só felicidade
E na firma ela arrepia

Entrava no cabelerero
Feiúra era o que mais temia
Passava longe do Mostero
Com reza nada queria
Bebê era desejo martrero
Que mais a ela servia

Fumar era seu esporte
O pagode sua religião
Dançar era o seu mote
Xumbregar a fascinação
Pros amigos era a sorte
Pro marido preocupação

Longe da balada
Na responsabilidade
A cabeça atarantada
Pensava prosmiscuidade
A Mulé abestaiada
Falava caduquidade

Quando a morte me levá
Pro Céu quero ir não
Meus amigos num vão lá
Lá num tem nenhum tesão
Bebê, fumá, trepá
Posso lá fazê não

Que graça tem um lugá
Que só anjinho se vê
Eles vão pra lá e pra cá
Com harpinha de doer
Um samba que é bom levá
No Céu nunca vou tê

Tubinha moleque crente
Na faxina trabaiou
Ouvindo a indecente
De horror logo ficou
Pro mostero de repente
Correu e pro frei falou

Frei Ludugero de Saldanha
Grande home de oração
Ao ouvir aquela manha
Com Tubinha na falação
A aflição foi tamanha
Que prostou-se de aversão

O frei era destemido
Logo se recuperou
Pegou na Bíblia sofrido
Do crucifixo se apoderou
Por Tubinha foi conduzido
A alma que pecaminou

Chegando ao local indicado
Ludugero logo parou
É aqui que mortificado
Com a coisa ruim se abalou
Aruam ainda dava recado
Que o frei num gostou

Apontada por Tubinha
A faceira deu um jeito
De falar a ladainha
Pro frei sem arrespeito
Pois do Céu ainda tinha
O mesmo triste conceito

O frei logo elevou
A cruz do seu peito
Pra faceira ele apontou
A catequese e o preceito
Por horas ele falou
Mas a alma não tinha jeito

Quanto mais o frei falasse
A danada mais sorria
E do frei só caçoasse
Céu e inferno fugiria
Quando a morte apontasse
Purpurina ela seria

Diante daquela artimanha
O frei num teve jeito
Exorcismo era a façanha
Pra mulé ficar direito
E acabar com a sanha
De tratar Céu com desrespeito


Frei ludugero rezou
Pros santos ajudá
A expulsão começou
Era diabo a se peidá
328 o povo contou
Desse bicho a voá

Depois da limpeza diabólica
Aruam tava retumbante
Parecia em coma alcoólica
Com o fato alucinante
De tirar toda a cólica
Dos demos esfuziantes

O frei vendo ela
Naquela situação
Pegou a mão dela
Vendo logo a feição
Duma vibração nela
Veio inteiro o cramulhão

Um coisa-ruim tinha sobrado
Na mulé da vaidade
E no frei todo assombrado
Uma rasteira de verdade
Acudiu o coitado
A mulé com liberdade

Vem cá sua danada
O Céu é que num te quer
E depois desta encochada
Na gandaia como qualquer
Vou viver minha jornada
Como home que te quer.